Ima(r)gens: tempo-memória

De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. (ROSA, 1994; p. 409-413)

A produção e reprodução formidável de imagens pelos diversos meios técnicos disponíveis hoje, nos põe a navegar por um oceano de referências imagéticas que nos faz crer estarmos de fato imersos na tal “modernidade líquida”1, onde tudo é incerto, volátil e frágil. Onde a proa dessa produção não se assenta é o lugar tempo-memória no qual, à margem da produção em massa, se pretende provocar outras criações, outros olhares. Tal qual o pai-canoeiro do conto de Guimarães Rosa, em cuja terceira margem é o não-lugar entre as beiras do rio, é o deixar-se ir “— sem fazer conta do se-ir do viver.”2 Constitui-se mais que uma provocação, um chamamento para uma terceira via: não tão volátil conquanto a modernidade se faz presente, nem tão hirta quanto a História da Arte nos faz supor.

Essa modernidade tende a nos levar ao limiar das definições e conceitos. Tempo fluido e “modernidade líquida”, da qual nos adverte Bauman (2001) para o tempo do pós-guerra, sobretudo a partir dos anos 1960, marcam o fim das relações sociais rígidas e o início do “capitalismo industrial”. Tempo de hibridismo3 como fenômeno predominantemente latino-americano, permeando as relações de consumo e apropriação cultural.

Despojados os remos da canoa, tempo-memória é o que temos. Um lugar híbrido em forma e conteúdo, onde o esquecimento não se constitui em oposto, mas acessório, e o devir deita o fluxo em suas águas agitadas. Tempo-memória é buscar inconstâncias, é a matéria da poesia com que Manuel de Barros “desenhou o cheiro das arvores”4, é o não-lugar da canoa à deriva, ou ainda, como sugere Tarkovski:

O tempo e a memória incorporam-se em uma só entidade; são como os dois lados de uma medalha. É por demais óbvio que, sem o Tempo, a memória também não pode existir. A memória, porém, é algo tão complexo que nenhuma relação de todos os seus atributos seria capaz de definir a totalidade das impressões através das quais ela nos afeta A memória é um conceito espiritual! (TARKOVSKI, 2002; p. 64.)

No cerne desse tempo-memória está, quem sabe, o lugar da criação. Se, conforme o cineasta russo, “memória é um conceito espiritual”, tempo-memória enquanto faces indissolúveis da mesma medalha supõem pertencer à mesma natureza. Sua complexidade talvez resulte de uma soma imperfeita, que não representa necessariamente a adição ou sobreposição de conceitos, mas da crença numa terceira via, como a terceira margem do rio. Como o não-lugar da travessia, o estar sempre em trânsito entre margens, ou como sugere Álvaro de Campos: “na véspera de não partir nunca…”5


1 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro. Zahar, 2001.

2 ROSA, João Guimarães. “A terceira margem do rio”. In: Ficção completa: volume II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 409-413.

3 CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo Editora da USP, 2013. – (Ensaios Latino-americanos, 1)

4 BARROS, Manuel de. Meu quintal é maior do que o mundo. Rio de Janeiro. Objetiva, 2015

5 PESSOA, Fernando. Obra Poética. Volume único. Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1993.